quarta-feira, 9 de junho de 2010

Barca

Por ora todos aguardam que passe. Algumas vezes tropeçam olhos nos meus, quando me dou conta, pisco longe. Estou mirando lá o horizonte. Mira-me de volta e pergunta-me qualquer coisa que não escuto. Escuro. Tem também a moça dos gatos. As cadeiras para os homens que não possuem uma perna, ou as duas. Essas são as cadeiras de rodas, sem motor. Com motor é libido. A outra não se conforma que eu seja bilíngüe, e que fale comigo mesmo. Quereria o quê? Que eu falasse com ela? Qual seja: “Perder tempo sozinho? Fale comigo, estranho”. Duvido, deve ser mais: morra, você é maluco, não consigo virar o rosto porque sua falta de escrúpulos me entretém, e isso é insuportável. Respondo-me, sim. Olha para mim, meu bem. Não tardará, jogarão no chão as correntes, e nós, manada, flutuaremos até Niterói. Tem as pessoas que entraram por onde sairiam as outras. As outras não compareceram, foi um esquecimento em massa. Não é tão mais indecoroso burlar os costumes, é mais simples. Nunca foi indecoroso. Seria agressivo: Pega ladrão! Os homens e as mulheres roubam meu lugar um passo antes do deles. Mas isso não importa, o que importa é importante sem que se lhe atribua importância. Aqui a máxima é o odor desprendido das axilas. Assim reconhece-se o nicho. Canta, ó nega musa, as dores de meu pai, de minha mãe, transcritas no sensório: sou fina e linda, e penetro narinas. Eu fedo porque existo, eu existo porque fedo? Feder é a maior contra conquista. Fazemos para descobrir que já estava feito. E esquecido, diria o outro. O chorume tem cheiro de laranja. Laranja podre, que seja, mas laranja. Lá, à frente, não é o ruivo feio que empunha a corrente. Hoje é o negro número 480.546 (quatrocentos e oitenta mil quinhentos e quarenta e seis) vivente no Brasil. Assim o faz, ele, majestosamente:

Ele tira um elo da corrente de um ganchinho. Ele tira outro elo da corrente de outro ganchinho. Ele larga ambos os elos. Bam! Que estrondo! Estamos livres e encaminhamo-nos para o espaço apertado. Os negros são mesmo o âmago do Brasil. Eles têm cor de terra. A terra tem a cor dos negros. A areia tem a cor dos amarelos. As fossas abissais, as rachaduras, os umbigos dos gordos, as vaginas, os cortes são os olhos do chinês, do japonês, do coreano, etc. A neve tem a cor do branco. “Porém não sei como é a neve, / Eu nunca vi a neve, / Eu não gosto da neve!”. O branco é da nuvem. A nuvem é do algodão doce. O doce é do açúcar. E o açúcar é branco, sacou?

Caminhamos. Longe vem um enigma, soando nas ondas da baía. Começa com “quem”, o resto não se ouve. Ou melhor, não o ouvi eu, outras pessoas aparentam compenetradas, acredito que possa ser na solução. Ou pretendem supor o que seja aquilo que vem depois de quem. Seria perigosa especulação? E Aristóteles falando sobre a comédia? Está claro? Meu bem se veste sempre com um laço no pescoço. Um dia perguntei-lhe o porquê daquilo. Não me respondeu, e cantou uma canção. Tempos depois, enquanto dormia, desatei o laço; sua cabeça caiu. Gritava comigo, ofendidíssima, e eu, me desculpando, explicava o incidente. Ela sentia-se exposta; eu já havia visto suas partes íntimas, mas nunca sua traquéia. E que traquéia, diga-se de passagem. Agora me declaro apaixonado e ela ressente-se. Não fala comigo. Pede-me apenas que a vire para parede, à guisa de desprezo por mim. Eu obedeço e me sinto desprezado. “Mas amo você”, digo eu. “Ama?”, diz ela. “Amo”, digo eu. E não diz mais nada. Eu me viro e vou embora.

Tem o moleque de cicatriz, feio, que quer me roubar. Eu quase o ouço dizendo “pa-ssa tu-do, po-rra”. Mas eu sou outro moleque, à parte. “Tudo” é muito metafísico para que eu possa passá-lo sem titubear. Assim, castrar as regras, nego isso. Não é possível que ele exista. Se eu existo, isto é. Não é possível que coexistamos. Não por uma questão de coerência, não por uma questão de sentido. Mas por que não é possível, simplesmente por isso, por ser uma impossibilidade. Não vai acontecer, não vai tomar lugar. Se fizer uma tentativa, aquilo se desconfigura, não possui forma, não é perceptível, é ultravioleta, não carrega coisa alguma. Eis uma alternativa plausível: ele vai se virar, tirar a roupa, o disfarce, e se revelará a mulher da minha vida. Essa é a verdade.

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