domingo, 16 de fevereiro de 2014

Me pergunte dos meus inimigos invisíveis


Título sugerido por Luísa, extraído de "Igreja Não Feita Com Mãos" de David Foster Wallace, tradução de José Rubens Siqueira.

“I feel stupid
And contagious”

Kurt Cobain

I.

Então esticou minha camisa, puxando pela barra branca, igual à cor restante da peça, à exceção do objeto de seu interesse. Um filete reto e longo vermelho cuja vivacidade já era ligeiramente tornada opaca pelo tecido. Que isso, ela disse. Um corte não muito fundo, agora eu sentia, mas longo, do meu peito à altura do umbigo, ou o contrário, do umbigo ao peito. Não me preocupei em responder por estar preocupado, tal como ela aparentava estar, em saber das dimensões do corte. Mas quis mais, creio, não contente em admirar a retidão da marca no tecido. Ela com a mão dura forçando-me abaixo compreendeu equivocadamente meu gesto de tentar olhar meu peito sem a mediação da camisa, pois comecei-o por tentar tirar sua mão da barra. Compreendeu, penso, que eu estivesse fraco o suficiente para algo pouco razoável ou delirante como envergonhar-me de estar sangrando em sua frente, algo do gênero, uma coisa orgulhosa de estar sangrando e não precisar de ajuda e de saber me cuidar sozinho, talvez pensasse nada disso, de todo modo resultado é que não me deixou encostar em minha roupa. O que me deixou irritado, nada muito relevante em termos de irritação, porém de fundamental importância pois me fez, só então, dar atenção a alguma coisa que não fosse a dor ardida de quando curvava um pouco o corpo para ver o início (ou o fim) da marca do corte. Foi somente aí que vi que aquele rosto feminino jamais havia cruzado comigo. Uma completa estranha, velha, um rosto seco negro chupado misto entre eu-sei-o-que-estou-fazendo-porque-acumulei-ou-vivi-respectivamente-quer-sejam-anos-de-experiência-ou-experiência-de-anos e deus-tende-piedade-de-nós-ele-está-no-meio-de-nós. Desculpe. Desvencilhei-me sem dar tempo para reação firme, senão um balbucio autoritário disparado com um gesto brusco de tentar deter meu rumo para adiante, ou para detrás, questão relativa a que rumo tomava antes de todo esse episódio se dar coisa que não saberia adivinhar no meu caso presente, o rumo, isto é. Não sabia o que estava fazendo ali. Ei. Largou minha camisa acidentalmente pelo modo brusco como me movi, mas logo retomou o escarafuncho das mãos no ar na direção da camisa, e aos poucos, sobre a superfície branca, e, ainda mais aos poucos ainda (o que quer dizer que ela fez tudo isso notavelmente rápido), sobre o trecho varado pela fina faixa vermelha. Não, desculpe. Saí e puxei a camisa de seus dedos aparentemente fracos e sabe-se lá como ainda não mortos mas firmes como ferro. Como não me largasse, o elástico da camisa estalou, o que fez com que ela se assustasse, largasse de pronto a camisa como se o tecido queimasse, se desse conta do que aconteceu (isto é, que a camisa, e não eu, havia estalado) e iniciasse um procedimento de desculpas muito precisamente mesuradas (oriundas provavelmente de um processo moral artesanal ancestral cuja técnica era passada de geração para geração) simultâneo a novo escarafuncho de mãos sobre o ar até a camisa. Obrigado. Saí rapidamente e não conseguiu vir atrás, somente desequilibrar-se, pois suas pernas aparentemente fracas eram de fato fracas e estavam despreparadas para o repentino comando de moverem-se com força e firmeza. Menino, gritou. Menino é o caralho. Guardei para mim o que se afiguraria para ela como desaforo terrível de uma pessoa ingrata, visivelmente precisando de ajuda, esse abismo entre gerações, talvez ela pensasse isso. A essa altura, alguns passos de distância, já não posso desengasgar o menino é o caralho sem a sensação de timing ruim, o que somaria talvez à apreensão dela uma ideia de além do mais eu ainda ser meio débil mental, ou “lento”, ou “criado pela avó”. Já isso não sei se faria com que ela se empenhasse ainda mais em me ajudar ou se daria graças (a deus) por eu mesmo ter me distanciado dela. Menino. Menino é o caralho. Digo e repito baixo para mim, tentando entender onde estou.

II.

Empurrei a porta encostada de Plêiade. Como pudera estar encostada não sei, estando incerto de ela ter sabido de antemão que eu estava indo. Fechei-a e o estrondo dos metais preenchendo buracos e arranhando a fez aparecer. Apressada, deslizou o pé descalço no verniz do taco com ruído agudo e tropeçou com ruído surdo e seco, olhos bem abertos e urgentes, antes de me ver. Esperava outra pessoa ou nada. Conforme fosse, eu era inesperado. Morena e magra, uma blusa negra que ia até logo acima do umbigo, short jeans curto e claro. Os seios a essa altura já imóveis.

Plêiade coçou meu queixo, puxando e torcendo uns fios de barba. E você acha que tem feito o que esses anos? Estava se referindo ao que estávamos conversando, creio que de maneira precisa e atenciosa a algum conjunto de palavras que proferi, não permitindo uma resposta como “pois é, não sei” ou “esta é a questão”, porque era óbvio que era a questão e que eu não sabia, a pergunta era: dada a obviedade da questão referida e que apesar de ou justamente por ser óbvia eu não soubesse a resposta, como me pareceria possível me aproximar do problema?
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Lembro de voltar pra casa, muitas vezes, maioria delas a luz sépia incide dos postes, tudo meio fétido e suado, fritura, cerveja, bêbado algumas vezes, outras o pau com cheiro e grude de boceta, demorando muito até em casa, às vezes menos. Volto muitas vezes, incontáveis, durante muitos anos, todos eles. De manhã, o tempo apertado, a pressa e a impressão de que a minha vida importa alguma coisa. Por causa da pressa.

Como se saísse fugido. De manhã cada vez. Evidentemente não é assim. Antes fosse, daria algum lampejo de relevância à minha vida. Longe disso. Fugindo segundo uma lógica que parecia a de fuga, isto é, ninguém obrigava ninguém a ficar, a ponto de haver querer fugir, nem eu ameaçava a estadia de alguém que, ameaçado, se achasse no direito de me prender ou expulsar, quer dizer, ninguém me deportava ou exilava ou degredava (o que não seria fuga, mas variante). Então, fugia na medida em que procurava justificar a saída dali por um motivo, eu supunha, elevado. Motivo oculto não verbalizável e obscuramente fundamental. Tão fundamental que a fuga era incessante e "ali" não era tão descomplicado quanto pareceria: saía fugido de a para b de onde fugia de volta para a. O sono um intervalo cuja existência só vivia na vigília póstuma, quando interrompido. Sorte comum, não havia nada de excepcionalmente mau nisso.

Sempre fui educado a falar mal pelas costas, o que, não só me ensinaram como o mais socialmente construtivo e edificante (bem como falar mal em ocasiões sociais de um sujeito em particular, ou de alguma coisa em particular, o que sempre fortalecia os elos recém formados entre pessoas quase estranhas), apesar de algumas poucas vezes ter sido pego em situações constrangedoras em que precisei, diante da pessoa de que se falava, dar endereços menos danosos ao que eu havia dito, tentando deixar claro, ao contrário do que já ficara claro, que eu não estava falando mal. Aí o “não foi isso o que eu disse” ou o mais atrevido “você não entendeu o que eu disse”. Eu era e sou comum, isso estava claro, medianamente cidadão e tal. Com toda a mediocridade intrínseca e aterrorizado pelo que abalasse de fato a estabilidade dessa mediocridade.

Então está claro que não fugia de nenhum modo, apesar da impressão viva de ser exatamente isso o que eu fazia. Pois dizer ou pensar que eu fugia queria dizer que vivia uma injustiça da qual fugia em busca da justiça, uma injustiça simples, explicável em poucas palavras, poucas ideias, mas que era possível tornar obscura para parecer menos simples, muito mais valorosa do que ordinariamente comum, em busca da justiça, não necessariamente, o que é curioso, estancando toda a injustiça que tomava lugar nessa circunstância da qual fugia (e para a qual me dirigia: outra, já que a é diferente de b; mas na medida em que fujo de b de volta para a, de onde fugi em primeiro lugar, os dois lugares ou circunstancias são idênticos, na exata medida de provocarem o mesmo efeito, independente de suas características próprias). Meu lugar no mapa mudava, não a injustiça das circunstâncias. Ou seja, a ideia de que eu fugia era a minha garantia de ser um bom ser humano dotado de uma capacidade bastante acurada de me dar conta da situação em que me encontrava e entender as implicações futuras problemáticas de não procurar mudá-la, ou me mudar dela, bem como as condições de possibilidade de sua formação: olho para a situação, percebo a injustiça e julgo uma boa ideia conquistar a justiça mediante a fuga. O que não faz muito sentido. Talvez a ideia de que eu seja um lugar inabitável. O que é uma espécie de onda esquisita.  Apesar de ser o lugar que me acompanha a todo lugar. Talvez a única circunstância em que uma fuga seja uma medida madura diante de uma injustiça seja aquela na qual seja injusto que não se possa sair do lugar. Aí, é arriscado sair, trata-se de uma fuga, algo que precisa ser mantido sob sigilo enquanto se dá, do contrário, o que quer que seja que sirva de autoridade fará o possível dentro de seu poder para impedi-lo de fugir e manterá, assim, a injustiça, que, não obstante, é o que é a justiça, justa, para esse poder. Eu, não. Meu caminho era aparentemente desimpedido, podia ficar ou ir, não havia dilema, mas eu o inventava, todos os dias e o tempo todo. E aí achava prudente e inteligente sair de cena, fugido, me parecia. Sempre saídas, e entradas à maneira de saídas.

Isso era mentira. Então dizer o que disso de sentir uma arma na minha boca? Ingratidão. Uma combinação de burrice e desespero? Uma pseudo-miséria instituída que me escusava de me importar com qualquer outra coisa do mundo que não fosse eu mesmo?

Eu tenho meus assuntos, pareço acreditar, que são foder e encher a cara e fumar maconha e com a convicção de que fazendo isso na verdade sou alguma espécie de sanador do que acredito ser uma espécie de câncer da humanidade, ou pelo menos do meu bairro, ou pior, da minha família.

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Plêiade talvez se admire menos pelo conteúdo do que pelo que o conteúdo parece exigir, algo como uma resposta diagnóstica e prognóstica. Qualquer resposta que ela dê é a pior possível. Seus dedos migram de debaixo do meu queixo para a lateral da minha mandíbula. Olha minha boca fechada. As unhas longas arranham leve meu rosto, os dedos passam pelo cabelo e fecham-se sobre os fios curtos e secos. Estranho. Seus olhos, percebo somente agora, estão vermelhos. Não sei se está emocionada ou se fumou maconha. Nem se eu a emocionei, possibilidade que acho francamente estranha.  Nem sei que maconha seria, ela não compra nem planta. Já a vi jogando fora pontas e em seguida levando esporro. Um esporro macilento e vagaroso, é verdade, mas um esporro. As vezes que fumou, bebeu cerveja junto e se vomitou inteira, nada atraente – fato –, vezes que pude me mostrar certo modo valoroso, cuidando dela, talvez amorosamente. Não obstante isso, insistia na combinação. Pode ser que houvesse alguém com ela antes que me recebesse.  Ou mesmo ali, agora. Só então olho ao redor. Não vejo nada, isto é, ninguém além de nós. Não parece haver ninguém embaixo da pilha de roupas no sofá, mas posso estar enganado. As coisas com ela geralmente são sombrias. Plêiade toma minha mão e tomo um susto. Levanta-se, anda, eu a sigo, as mãos dadas. Vai até a porta, talvez ela me mostre alguma coisa. Abre para o corredor escuro, estreito e feio. Paramos. Fritam um peixe. Ela me empurra graciosamente, sua mão no meio das minhas costas. Estou fora, creio que isso deve fazer algum sentido. A gente se fala. Tá, respondi, ciente de ter dito a coisa errada.

III.

Sinto que caibo mal nas roupas que visto então olho meu peito. Uma blusa escura justa feminina. Deve ter me emprestado. Puxo a borda escura e olho meu tronco. A mancha vermelha está lá, menos assustadora. Agora entendo os olhares masculinos intrigados. Não é o tipo de roupa que uso. Estou em casa, sentado numa poltrona. Na poltrona, não tenho outras. Resgatei esta ao lado de um poste. Não vejo defeitos evidentes nela, o que me assusta mantê-la, por imaginar o dia em que o tal defeito se mostre inequivocamente. O que me consola é pensar que a pessoa que se desfez dela era muito travada e irritada com alguma característica própria da forma da poltrona que não só não me incomoda como me é imperceptível , ou tinha alguma espécie de desafeto com ela, por exemplo a filha cujo pai era severo e mau mas bonitão e atraente e sempre cobiçava as amiguinhas dela e quando ela faz quinze anos o que significa que também as amigas fizeram ou estão para ou fizeram no ano anterior ele de fato come uma ou duas delas porque entende por algum motivo desconhecido que é uma faixa etária propensa para o tipo de iniciativa que ele propunha em cima daquela poltrona e ela sabe disso porque as amigas dizem que ele faz posições esquisitas nela na poltrona mas que promovem intenso prazer nas garotas que por algum motivo não se sentem extremamente envergonhadas de terem transado com o pai dela muito menos de entrar em detalhes a respeito da transa e das tais posições pelo contrário e agora anos depois a garota é mais velha agora em torno dos trinta o pai morre e deixa a poltrona para ela nitidamente uma piada de péssimo gosto ela pega a poltrona descabelada e furiosa larga-a na rua e cospe nela. Nunca vi, porém, vestígios de fluidos corporais. Fiz exames pormenorizados nesse sentido, a partir dessa hipótese (que me pareceu razoável, apesar de incomum) até onde a falta de tecnologia apropriada me permitiu ir. Mas tendo a pensar que alguma história, não necessariamente envolvendo temas tão tórridos, esteja envolvida no descarte da poltrona. É uma boa poltrona e de certo modo é um pouco doloroso imaginá-la um palco de sexo intranquilo ou desafetos outros e talvez afins, quando nela eu somente me recosto, sento, durmo. Uma eventual punheta, é verdade.

Estava assim, sentindo meu saco apodrecendo sob o calor e derretendo a poltrona. Tarde ensolarada e imóvel, pessoas e outros animais fazendo sons vocálicos. Plêiade liga e pergunta se eu estou com a blusa dela. Disse que sim, agradeci. Jura que você pegou? Isso eu não sabia, isso de ela não saber, ou melhor, que não fosse ela quem tinha me dado e, pior, que eu tinha tomado sem permissão. Fiquei calado, esperando um desfecho conclusivo. Por que você não me pediu?, podia ter te dado outra, tenho algumas camisas de homem aqui, você sabe. Esperei uns segundos, não soava conclusivo. Parecia exigir uma resposta esclarecedora. Quer de volta? Ela riu com uma expiração rápida exasperada. Depois me liga tá, e desligou.

IV.

Eu preciso te falar uma coisa muito séria. Ela havia me puxado para um lugar menos barulhento. Eram uns amigos dela num piquenique, embaixo do viaduto ao lado do terminal Padre Henrique Otte. Eles diziam que tinha a ver com um protesto. Eu assentia e passava geleia de damasco nas bolachas de água e sal. Aquilo devia fazer sentido, possivelmente. Me compadecia da raiva que transbordava das ideias expelidas, traquejo incomum e fraquejo condizente, bem como do silêncio que as preenchia, ficava a meu encargo muito mais intuir que tudo aquilo estava possivelmente certo e possivelmente fazia sentido, do que lidar com minha inépcia em assuntos tacitamente sérios diante de formulações robustas esclarecidas e esclarecedoras, sentia que estava diante de outros ineptos e me compadecia alegremente de nossa incapacidade crônica de agir, seja lá o que isso signifique, porém também presente uma espécie torta de lado bom ou de lado nem tão ruim assim de ser capaz de falar sobre  a incapacidade e a inépcia e a esterilidade dos dias e a aridez dos corpos. Eu era e estava numa vitrine ideológica ininteligível, ou um minifúndio da crista da onda, me sentindo terrivelmente bem e/ou bucolicamente mal. Ria quando parecia haver motivo para tanto, e fechava o cenho numa atitude reflexiva quando o tom dos discursos era consideravelmente ameno, sombrio e sério. Era possível que fosse um protesto. Eu somente passava por ali de ônibus olhando eventuais pessoas com pouca roupa dormindo à sombra do concreto e sobre o chão gramado. Não entendia nada e seria cedo ou tarde certamente degolado por uma insurreição popular cujo Terror fosse tão implacável quanto o francês. De modo que encarava meus dias como uma espécie de trilha de dias contados (claro, sobreposta à natural de cada um, já que todos eventualmente morrerão) e via em cada sujeito mais pobre que eu meu futuro carrasco. Ela estava com sua mão pequena ao redor de meu pulso, me guiando. Isso talvez ela pensasse me agradar. Via sua nuca, cabelos escuros e cacheados. Encostamos perto de umas pessoas esperando ônibus. Seres negros e mulatos, em sua maioria, alguns brancos. Dentre os mulatos e brancos, alguns soavam do nordeste, meu mau ouvido para sotaques imaginava alguns cearenses, uns falavam e não sabia dizer se era português. Um dialeto percussivo de palavras indiscerníveis e, não fossem os gestos irregulares e distraídos, suporia ser uma espécie de rito tribal. Ela aí disse que precisava me falar uma coisa muito séria. Pensava que ela queria um lugar menos barulhento, mas claramente não foi este o critério. Permaneci em silêncio esperando. Sua testa redonda suava um pouco. Os olhos verdes e fixos. Eu não sei, estou sentindo umas coisas muito esquisitas por você, não sei se você também, mas sei lá, não sei se é bom a gente se ver e deixar isso rolar solto, ou se não, sabe. Eu não sabia. Só agora via que não era Plêiade, então estava muito confuso, sem saber do que ela estava falando com seus dentes pequenos. Olhou-me profundamente, talvez querendo dizer alguma coisa com este olhar profundo. Poderia facilmente dar uma resposta melindrosa e elegante, mas havia aprendido com Plêiade a ter a destreza de responder evitando responder. O que você quer?

V.

Este rosto magro e soturno, a barba feita rente, pele cinza em decorrência, inclinado para baixo, uns fios do cabelo liso escorriam pela testa grudenta de suor, o pescoço magro, os olhos vasculhavam um ponto fixo no chão preocupados, os lábios crispados esperando alguma coisa. Este rosto chama-se Crássio. O que você acha? Sua voz saiu falhada, possivelmente permanecera muito tempo naquele silêncio, impossível lembrar com segurança se era o caso e, se sim, por quanto tempo. Me pegou de surpresa. Do quê? Ele me olhou impressionado. Desdobrou um papel branco de entre as mãos já bem desgastado, pude entrever umas palavras escritas em esferográfica azul, outras rasuradas. Ele lê o que está escrito.

                                                 :

Letígia,

Amo você sob a condição, nesse caso necessária, de ser difícil amar você empreitada de difícil execução e manutenção. Não é necessariamente prazeroso amar você fazer isso, e os momentos de prazer são de certa maneira falaciosos, como na Mirrors do Timberlake parece ser o que ele pensa ser o amor ideal, esse papo de “amo você porque você é idêntica a mim”. É difícil porque não se trata, ao menos não na maioria do tempo, de uma débil celebração da ilusão das identificações entre nós, que é uma maneira mais imediata de amor, sem falar que é óbvia e estúpida. Você é uma outra língua estrangeira que compreendo mal, mas estudo: entendo melhor as regras gramaticais a gramática do que falo sou capaz de falar você. Somos outros metabolismos, ritmo dos fluxos sanguíneos nos vasos, nojos, dentes e unhas. Contigo Perto de você, não me vejo por perto, senão como a carcaça móvel que comporta minha voz. Estou perdido em tentar conversar, o que jamais foi tão difícil e essencial. Desesperadamente necessário.

                                                 :

Bacaninha, você que fez? É, isso no final é do Caetano; “desesperadamente necessário”. Veloso? É. Sei. Ela me falou da conversa que vocês tiveram. Conversa? É, aí eu acho que pode dar certo entre nós. Desculpa, você tá falando do que entre quem e quem? De alguma coisa séria entre eu e Letígia, porra, no piquenique lá vocês conversaram. Ah, sim. Ela te disse que tava sentindo umas coisas por mim. Foi? Não foi? Pensei que ela estivesse falando de mim. De você o que? Estivesse sentindo coisas por mim. Por você? Sim. Foi isso o que ela disse? Bom, pelo que você tá me dizendo, não. Mas foi isso o que ela disse? Não sei, acho que não. Você tava lá, porra, sabe melhor do que eu. Não, não, sabe, rola essa tendência de dar uma superestimada no testemunho da testemunha, não é, sem falar que eu tendo a entender tudo errado. Ela me disse que vocês conversaram e foi esclarecedor. Sei. O que você acha? Talvez tenha sido, não sei. Quê? Que o que? Eu ler isso pra ela, que que você acha? Vai fundo. Sério? É, sei lá, a galera curte essa onda franca, e se você não for totalmente boçal e mas ligeiramente bem articulado, a parada rola. Mas eu fui muito sincero. Vai nessa.

Plêiade vem da cozinha. Traz uma garrafa térmica e três xicaras. Uma surpresa agradável vê-la ali e trazendo café. Nunca sei quando e onde devo encontrá-la. Antes que possa adivinhar, ela já apareceu ou já não aparecerá. É sempre assim, eu sempre um passo atrás, o que, nesse caso, não se configura como “pior” ou “desvantajoso”, tal como seria de uma perspectiva competitiva, mas passa uma espécie esquisita de segurança. Como se a cada passo, Plêiade pudesse aparecer para se assegurar de que eu estive prestando atenção. Já ela talvez me tenha como uma praga.

Crássio se interrompe, não sei se pela presença de Plêiade ou se pelo meu súbito desvio de atenção, ou se por ambos. Talvez ele esteja desconfortável em sua presença. Ela deposita a garrafa e as xícaras na mesa entre Crássio e eu. Senta-se à minha direita sobre o sofá, separado por em torno de um metro de distância da minha cadeira. Tira do bolso espremido um maço de Marlboro vermelho, dele tira um cigarro e acende. Percebo que parei de dar atenção a Crássio e estou encarando Plêiade e o cigarro recém aceso entre os lábios. Ele está com a boca aberta esperando minha retomada de atenção. Café? Sim, por favor. Crássio deixa que eu o sirva e fala.

Mas tô pensando aqui. Sei que sou capaz de dizer coisas bonitas, já as disse, e sei reconhecer essas coisas. Na verdade sei de coisas que parecem bonitas, sei reconhecer a aparência de coisas que parecem bonitas. Sei reproduzi-las e também ser autenticamente sincero, que talvez culmine em dizer algo bonito. Esse é o problema: se eu reconheço algo como algo bonito, eu sei que parece algo bonito e se parece bonito eu tendo a pensar que não é de fato bonito, mas só aparentemente bonito – não é, mas parece –, o que põe em dúvida minha capacidade de ser sincero. Porque talvez na verdade algo vertido de uma postura autenticamente sincera na maioria das vezes não será algo bonito em si, ou esteticamente agradável, pelo contrário: será constrangedor. Mas se constranger pode ser bonito, quer dizer, não sei se “bonito”, é, enfim, pode ser, “bonito”, como ver alguém nu, constrangido, como se envergonhado do próprio corpo. Quer dizer, talvez eu não possa ser sincero numa carta porque resolvi ser sincero numa carta, porque só se é sincero quando se mostra o que não se quer mostrar e o que não se quer mostrar não se quer mostrar. Ainda que eu queira ser sincero, eu não sou capaz da sinceridade implacável, porque ela não me pertence, ela é uma talvez uma parte estranha de mim, incontrolável e que não diz da maneira que eu quero ser ou deixar de ser, talvez uma contraparte externa do meu discurso. Eu sendo necessário, mas não suficiente.

Aquilo me deixa suficientemente interessado para não fazer questão de tentar compreender os trechos ligeiramente mais obscuros e menos desenvolvidos ou aonde ele desejaria chegar. Talvez não esteja abordando o assunto do mesmo modo direto de antes pela presença de Plêiade. Começo a sentir meu corpo se movendo com ansiedade e entendo que quero levar Crássio à porta. Não tenho certeza de se continua falando ou se se calou. De todo modo, ergo a mão para interrompê-lo e pedir a palavra. É isso, cara. Isso o quê? Faz o seguinte – me levanto, faço um gesto para que me acompanhe, ele deixa a xícara sobre a mesa, Plêiade traga e nos olha com remota curiosidade – essas paradas que você rasurou, põe de volta. Mas são uma merda. Tudo isso aí é uma merda, então põe tudo e vê se desencana dessa porra. Ele pensa. Ok. Boa sorte. Tchau. Falou.

Cigarro entre os dedos, antebraço erguido sobre o braço do sofá, sorriso de lábios juntos sem dentes debochando.

Você veio assim ou trocou de roupa aqui? Olhei para mim, outra vez uma blusa dela (cinza claro, três botões pequenos abertos num decote) e agora uma saia longa, preta. Explicava o frescor entre minhas pernas. Crássio não me disse nada, nem estranhou. Não? Não, quer dizer, acho que não. Talvez seja por causa do tempo que ficou sem te ver, aí achar que não deve comentar e ser indiscreto, mas deve ter estranhado. É, talvez. Esfreguei o tecido da saia entre meus dedos. É sua? É. Confortável. Se quiser, eu te empresto, mas me peça, ok?, não fica nessa de sair pegando. Não, eu não quero, só estou comentando que é confortável, ainda mais no calor e tal. Tá, é uma merda abrir o guarda roupa e não achar alguma coisa e ter que te encontrar na sala e ver você vestindo a saia ou a blusa ou as duas ou ter que te ligar pra saber se você levou pra casa. Eu faço isso muito? Vejo seus dentes, sua boca aberta paralisou e em seguida fecha devagar. Traga o cigarro e me olha em silêncio.

Agora qualquer movimento é em falso.

VI.

Instalada sobre mim, Letígia me corta. Defronte, ao centro, um quarto contíguo numa penumbra marrom sobre cuja cama há um homem nu de bruços sua bunda branca peluda e amorosa descansa entre os lençóis brancos mas ocres sob a luz junto de seu saco roxo inchado. Este saco chama-se Crássio. Uma luz fraca de cabeceira o ilumina. As portas brancas envidraçadas encostadas à direita e à esquerda ao modo de margens do vão escancarado que comunica os cômodos. Letígia me corta sem crueldade ou satisfação, sob luz incandescente forte que me faz suar tal a proximidade e potência, sem mencionar a sudorese nervosa, os olhos verdes de vidro imóveis como de hábito, discretamente interessada ante o leito, vermelho veio, que gradual galga. Unha ou canivete. Plêiade numa poltrona, talvez a poltrona, mas não tenho certeza. Observa num misto sinistro de preocupação e tédio, as pernas recolhidas ao assento estofado, o cotovelo direito sobre o braço direito da poltrona comporta o queixo enrugado, a boca fechada, os olhos abertos. O umbigo sob os seios. Acordo e Plêiade está próxima. Um dedo percorre a cicatriz. Lateja.

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