quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Cabeça

Às vezes ouvia um estrondo na lataria do ônibus. Pensava que era alguém socando ou estapeando pra que o motorista parasse, apesar dos intervalos longos. Mas o cargo reincidia sem se apresentar o encarregado, e, ninguém entrava. Não se devia tratar disso portanto. O motorista checou pelo retrovisor, de pronto se assustou um pouco, mas continuou, cada vez mais rápido. Cada vez porque ainda parava nos pontos, o que descompensava o investimento de rapidez. Até que numa vez, depois de breve exame do retrovisor, parou o carro saltou do volante, voltou porque se esquecera de abrir a porta, abriu e saiu correndo para a parte de trás. Todos se ergueram parcialmente dos lugares, ao modo de pombos, esticando os pescoços, pelas janelas ou por cima dos colegas de banco. Os olhinhos vermelhos e ligeiros. O motorista ia ao socorro de um homem com o crânio partido. Aparentemente, ele vinha batendo com toda a força a cabeça na parte lateral e traseira do ônibus. Agora não se aguentava em pé, estatelado no chão, ao modo do pescoço que não aguentava a cabeça, quando o socorredor tentava erguer seu tronco. Estava todo quebrado, e o sangue. Rolavam os comentários idosos feitos inclusive por velhos, meu deus, jesus cristo, filho  da puta sem juízo, morreu!, viu, tudo é tão perigoso, só pode ser maluco, só dá maluco. E o sangue manchando o asfalto, secava nesta merda de dia quente da porra. Estalava no asfalto. E quando é que vinha o motorista, compadeço tudo muito bem, mas eu ainda conservo minha cabeça e lamento. Ficar aqui suando, pretender entrar no coro caro aos fatalistas, de gente é muito doida, caralho não há nada que fazer ou esperar de ninguém. Soltei um puta que pariu, o sujeito do meu lado, pois é, e eu, não você não entendeu. Aí me olhou como se visse um ser inteiramente estranho, não poderíamos ser da mesma espécie, sem chance. Ergueu-se pra ver melhor o infeliz lá embaixo. Aquele fedor do ônibus como não bastasse. Sem ar-condicionado, talvez com ele piorasse o fedor, mas pelo menos fedia-se sem calor. Eu suando, limpei meu rosto com a camisa, e fiquei olhando pra minha barriga. Peguei uma folha de jornal, era o Destak, que circulava pelo chão e enxuguei meu tronco. Constatei um limite grave transposto. Chamem uma ambulância, não adianta o cara achar que resolve sozinho, o cara já deve estar morto. Só deve ter parado porque morreu e não conseguia mais bater a cabeça. Desci a camisa, e ventilei a barriga e as costas, dando uns puxõezinhos na malha. Caralho. Levantei pra olhar. Abertaça, fala sério, esse cara tá morto. Pra lá de morto. Desci do ônibus e fui andando pro outro ponto entre o Parque Lage e o Clube Militar. Rsrs.

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Almoçava minhas preocupações se voltaram para Lana. Era Laís, determinou que a chamássemos assim. Ela é dessas que escolhe o nome que lhe chamarão, não lhe dão nome. Acho interessante, mas não se trata disso. Ruminava sua imagem, que era bonita, todo o corpo. Não sei o quanto se interessava por mim. Julguei que talvez fosse suficiente para ligar propondo uma foda. Entre ela e eu, isto é. Ela não se procura impressionar com as coisas. Talvez ficasse desconcertada. Por telefone dava-lhe uma vantagem, de não poder ver seu rosto na hora. Liguei, tinha seu telefone, não me lembro quando peguei, se ela me deu, ou procurei tê-lo, fato é que tinha e liguei. Ela atendeu eu disse oi, tudo bom. Claro ela não sabia quem falava, falei sou eu e tal. Quer dizer, disse meu nome. Enfim. Você topa transar? O quê? Transar, você topa. Ah tá, você não tem namorada? Tenho. E então? E então o quê? E ela? Ela, o quê, sei lá, não, é só comigo, você topa? Não e ela é ok com isso? Não sei. Não acha melhor perguntar? Não, você topa? Não quero problema com ninguém. Você vai contar? Contar, hã, não. Nem eu, então vamo nessa. Mas cara, você nem é irresistível a ponto de eu passar por essa dor de cabeça. Ah fala sério. Fala sério é o caralho, não fode, eu até topava, entendeu, não tô fazendo nada, mas porra, não tô afim de dor de cabeça. Beleza eu falo com ela, se ela for tudo bem, topa? Beleza. Então beleza. Não liguei pra namorada. Foda-se. Disse que tudo ok, ela se animou, veio pra minha casa. Moro com dois caras. Fede. No meu quarto tem um fedor azedo suave, cuja origem desconheço. Transamos. Foi bom como normalmente é uma transa, nada de excepcional. Aliás, não sei se saberia reconhecer uma transa excepcional se participasse de uma. Ela parece ter se sentido de maneira parecida. Pelo menos no que concerne à primeira parte. Nada de excepcional. Acendeu um cigarro. Não sabia que você fumava. Só quando eu transo. Ah, então você não fuma fuma. Fumo. Entendi. Isso foi engraçado, aí fiz outra proposta. Escuta, você me faz um favorzão? Qual? É uma parada meio suja. Tipo o que?, se é de cozinhar, não sou de cozinhar, ou é metafisicamente má? Não, literalmente suja, de sangue. Hum. É o seguinte: eu quero bater minha cabeça na parede até morrer. Hum, tá. Sacou? Saquei, entro nisso onde, pra te enterrar? Se quiser, mas se quiser me deixar aqui tranquilo também. Mas ham, e aí? É porque eu não acredito que eu vou conseguir me matar assim, só conseguir foder minha cabeça e desmaiar. Tá. Aí queria que você pegasse sei lá, hã, pode ser um martelo, tem um maluco que mora aqui que tem um martelo, aí queria que você pegasse o martelo e me matasse quando eu cansar, pode ser? Ela pensou um pouco, não se desconcertou, acho que deve ter achado que eu tava tirando onda. Talvez eu estivesse, mas ela pagou pra ver aí fodeu. Ok, beleza, cadê o martelo? Catei no outro quarto. Dei pra ela e comecei. Claro que doeu pra caralho. Comecei a ficar tonto, e comecei a sangrar e a ficar meio triste. Vi que começava um orifício na parede. E que ele ficava vermelho bem de leve do meu sangue. Aí desmaiei. Fiquei considerando se ela ia fazer aquilo. Claro que por um momento eu quis que não. Julguei que enquanto eu me batia ela pudesse estar com o martelo na mão, assustada, querendo que eu parasse, naquele papo de mulher acuada, para com isso querido, vem pra cá, vamo foder que eu te faço jantar. Caralho, será que era isso que eu queria? Que merda. Bom, fato foi que logo acordei do desmaio. Não sei que pancada foi, se a terceira ou quarta, ou qual. Provavelmente não foi a primeira, já estava bem arrebentado. Gritei de dor, pra sacanear e ver se ela continuava. Urrei na verdade, afinal doía pior que tudo. Ela não se assustou. Quer dizer, teve um sobressalto no corpo, os dedos crisparam em volta do martelo suado sujo de sangue cabelos e pedaços de coisas, arreganhou os dentes, e lágrimas, algumas de cada olho despencaram, solícitas. Não chorava, nem o rosto avermelhava, aquelas verteram de outro modo. Parecia ódio, pena, nojo. Um inseto cujo modo de espirrar as tripas lembra o de um humano. Já não governava a mão, que desceu sobre mim e me fodeu a boca, partindo-me os dentes e as gengivas. Subia de novo descia. Afundou-me um olho depois. Experiência ímpar, apesar de aconselhar a ninguém. Ela estava me matando, sem vacilo. Que amor me obedecia.

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