título extraído de uma entrevista com o Kerouac. Curiosamente a frase não é dele, mas do entrevistador, Al Aronowitz.
"All I ever wanted, all I ever needed is here, in my arms" Depeche Mode
Subimos uns lances de escada. Ela à frente. Estava puta, claro. Claro, mas foda-se também, ia fazer o quê? Não podia fazer nada. Que ficasse puta. Era até bom. Pra ela. Pra mim, nem tanto. Não que significasse tanto pra mim. Era mais do que uma coisa à toa. Mas não era de suma importância. Não era. Era chato porque eu ia até ela e ela com aquela lápide no lugar do rosto. Mas tranquilo. Subíamos, ela naquela respiração peculiar a esses momentos de raiva. Ruidosa. Hoje ouvi uma palavra que não ouvia há tempos, copiosamente. Ela não respirava assim. Mas quando chorava, chorava assim. Arreganhava o rosto, todo mucoso, vermelho, essas coisas. Mas não estava chorando. Subia as escadas. Decidi parar. Decidi que não queria acompanhá-la. Decidi que foda-se, eu podia deixá-la em paz. Falei isso, que ia deixá-la em paz. Ela parou. Virou-se pra mim. A distância entre nós era grande. Ela via isso. Um patamar, duas portas de apartamentos. Sem adornos, pelo menos. Fez menção de descer, deve ter pensado fala sério, continuou onde estava. Perguntou por quanto tempo. Eu disse chega não é. Ela disse é. Então beleza. Depois eu me lembro de três dias depois. Estava nu, tomava banho, havia alguém comigo no chuveiro, não, não era isso, alguém batia à porta, pergunta você tá no banho. O som inequívoco da água no chão do box achava resposta suficiente. Todo aquele som na esperança de não ser ignorado. Ignorado. Eu me recuso a responder. Olho pro meu joelho, está sangrando, pouco, mas está, me ralei parece. Um fio escorre até o chão. Lavo, arde leve, termino o banho, me seco, olho no espelho. Embaçado. Mas é justamente este o meu rosto. Que bobagem, o momento em que alguém ouvirá isto e achará modestamente interessante. Modestamente qualquer coisa. Ou idiota, o que é mais fácil. Olha o que ele disse. Todo mundo pensa alguma merda sobre o próprio reflexo. Chega. Depois lembro de uma porrada no meu cocuruto, caí no chão. Botei minha mão espalmada lá, veio com sangue e suja do chão. Ao meu lado, uma menina nua, desacordada. Parecia alguma rua, meio familiar meio não, ou um estacionamento, os fundos de um restaurante. Um leve porém claro fedor. Quando foi isso. Não havia ninguém de remetente da porrada. Tentei acordar a garota. Dizia, primeiro leve, até quase gritar foi você que me bateu. Perguntei. Aos poucos comecei a afirmar. Dei uns socos nela, como via que gostei e ela não acordava saí correndo dali. Meu joelho me puxava pra baixo. Arregacei a calça, o ralado se estendia maior pela perna. Sangrava. Puta merda onde eu estava caralho. Depois eu nuns cobertores fedendo a porra. Não meus não minha. Terrivelmente. Havia um ser peludo dormindo e roncando ao meu lado, me movi, meu cu doía. Fui em seu socorro, meus dedos voltaram com sangue e um visco outro transparente. Cheirei. Caralho, dei o cu. E nem sei se gostei. Que merda de lugar era esse. Um colchão surrado no chão, conseguiria sentir os insetos debaixo. Seria o caso de procurá-los, não. Aranhas finas apenas no melhor dos casos. Tocava alguma coisa baixo, Frank Sinatra. I’ve got you under my skin. Inapropriado no mínimo. Aquele cheiro de incenso o quarto todo vermelho calor ele suava eu também. Partes da parede descascavam uma ou outra infiltração um quadro do Paul Klee. Deve ser daqueles que a cada oportunidade cita o Angelus Novus. Umas prateleiras com muitos livros. Está escuro o suficiente pra não ler as lombadas. Por isto sou grato. Abajures vermelhos, luzes totalmente terríveis, equivocadas, perfeitas para um mau momento, me vesti. O pau do cara saindo pela coberta. E eu será que enfiei aquela merda na boca. Será que ele enfiou o meu. E eu sei que poderia amar um homem assim. Chega. Depois ouvindo conversas no metrô nunca achei que sentiria falta. Sim são terríveis. Dispenso as minhas que venha a ter com outros. Às vezes, poucas, bem poucas, alguma alheia que interesse minimamente. Nenhuma que valha a pena. Sim, é uma pena pesada. O réu é sentenciado a ouvir por árduos anos, quantos durarem sua vida, conversas alheias. Notícias gargarejadas. Ou seja, tantos anos quantos forem sem saber quem são os personagens das histórias, pegar trechos desconexos que nunca encontrarão conexão entre si, histórias eternamente sem desfechos. Jamais essa conexão tão banal quanto remota. Um fio numa tomada. Me faltavam dois dedos na mão direita. Vomitei. Que merda era essa. Olhei pros lados puto. Sujo. Vomitei em cima de umas senhorinhas. Quanto tempo próximo sangrava. Todo mundo meio caralho que porra é essa mas uma parte meio foda-se também. Meio ih fodeu um maluco brabo. Virando a cara e torcendo pra eu não enxergar ninguém. Mas eu queria a porra dos meus dedos. Caralho, tava sangrando pra cacete ainda. Aquela mistura nojenta no chão. Me tiraram eles agora e eu não vi. Nem quem nem dedos. Acharam terrível o vômito, mas o sangue ok. Era isso pensei quase perguntando. Eu queria meus dedos. Não que eu precisasse, mas gostava da simetria das minhas mãos. Ah sim pensei. Soquei a parede até quebrar os outros dois dedos correspondentes da esquerda. Arrancar seria complicado assim, sem ferramentas. Estava numa fila de banco, agora sentia meu corpo mais curvado, a minha barriga entrava em meu corpo, não queria protuberar-se. Sentia que cada passo era tremura, hesitação em geral. E se eu hesitasse para sempre. Senhor, alguém me chamou, próximo. Quanto tempo próximo me chamavam. De repente usei meus olhos e compreendi que não enxergavam. Diante de mim o guichê. Eu disse isso perdoe não enxergo nada. Nada perguntou. Nada quer dizer enxergo tudo embaçado. Demais. Tente seus óculos. Sim, botei-os, alguma coisa melhorou. Meus olhos expiaram quer dizer expiraram. Quando foi isso. Vi que havia algumas contas em minha mão, supus que houvesse dinheiro na minha carteira. Fui até ela. Não abri, me detive antes. Minhas mãos estavam manchadas. Manchas de pele marrons de velho. Lá não estavam meus dedos. Dessa vez os quatro. As veias todas à mostra. Senhor. Só um instante. Um cara atrás de mim bufou porra. Olhei era um velho. Me olhava querendo me matar, mas distante. Uma intenção verdadeira e fictícia. Concluí que isto era importante para ele. Pode passar. Ele passou bufando e resmungando. Era gordo e parecia prestes a morrer. Manchas, falta de fôlego, cheirava a cigarro e perfume, a mistura caía-lhe bem, devia ter um saco grande e um pau ignorável ou de todo modo inútil. Quantos problemas, arrastar todo aquele peso por aí. O corpo não aguenta nem sequer a si próprio. Quanto mais o quê. O cara do guichê olhando pra ele. Agora ouvia com atenção a voz dele, era rouca, entrecortada, parecia a pior voz. Onde estava minha carteira. Fui dormir. Aconcheguei-me entre umas pessoas pouco incomodadas. Com cara de tudo bem. Quase me apaixonei assim. Escuro. Uma delas passou a mão nos meus ombros. Vi que estavam ligeiramente recurvos, lembrando um urubu. Sorri. Ela não. Quando foi isso. Continuou, eu vi que não era comigo, mas com meus ombros. Tratei de quedar-me. Não era comigo. Algumas tentavam se beijar. Ou pelo menos parecia. Uma outra começou a tirar minhas calças. Não reconheci minhas pernas. Estavam chupadas. Meus joelhos eram carne estragada. Ainda havia pés. Que horas eram. Perguntei. Deram-me um soco, cedi, teria caído não estivesse espremido entre todos. Fatiaram minha orelha. Gritei. Ouvi que não reconhecia o som. Puxaram meu pau pra fora mandaram mija. Eu ok. Mijei. E aí vocês não são tão terríveis assim mijar eu mijo toda hora. Eles assentiram. De fato. Vozes miúdas, quase não estavam lá. Apenas a dor me convencia. O mijo era demais. Uma coberta natural me aquecia. Tudo de que preciso está aqui, em meu corpo. Lembro de quando ela me disse algo parecido. O Enjoy the Silence do Depeche Mode que todo mundo conhece. Mas era mentira. Tudo se provou mentira. As mentiras se mantiveram mentiras, o que parecia verdadeiro se provou mentira. Rápido. Rápido. Nunca soube bem o que fazia. Jamais o que faria. Impossível dia seguinte que virá. Que viria. Rápido. Qualquer parte. Sair daqui o quanto antes. Não que o passo à frente não seja o passo atrás, que este lugar não seja o último, como foi o último. Mas sair daqui. Chega.