sábado, 13 de julho de 2013

Trauer

"Se algum dia você precisar da minha vida, venha e tome-a" Trigórin, citado a ele próprio pela Nina, escritos, todos, pelo Tchekhov, na Gaivota.

Quero morrer como um baseado. Burning out & fading away. Ser e não ser. Morrendo dançando, exaurindo, a carne sumindo dos ossos, empalidecendo, aqueles socos do som que agridem as caixas e um baixo que me trema os órgãos. As veias assomando à superfície, o sangue sedimentando nos fluxos lentos do leito. Os ossos desmoronando, os tendões rasgados. Tudo isso com a vida empesteada pelo corpo, até o último silvo da bomba do coração. Meu cérebro terá já há muito ido embora, - as sinapses nervosas foram bloqueadas e infiltradas e atrofiadas de modo que o cérebro não pudesse mais emitir ordens. Estava preso dentro do crânio, completamente lacrado. Por algum tempo ainda era possível enxergar por trás dos olhos o sofrimento silencioso e impotente do cérebro, até o dia em que ele finalmente acabou morrendo, porque os olhos se apagaram e não demonstravam mais emoções que o olho de um caranguejo na extremidade de um pedúnculo [Burroughs] - a decisão inicial empreendida pela via do cérebro, um suicídio consentido, autoeutanásico, é disso que sempre se tratou. Qual era o momento que eu esperava. Qual era o momento, a vida é simplesmente o caminho de achar o lugar em que se morrerá. É aqui. Chega. Um abraço. Todas as vezes que não cheguei às vias de fato na empresa contra mim era consequência disso: julgava ser aqui, me parece ainda que é, mas sinto que não, devo ainda me arrastar por algum tempo. Que pensam os que vão ao termo? Isso é quase uma paráfrase do Drummond, viver pra mim é vontade de morrer. Meus paralíticos sonhos desgosto de viver. Viver pra mim é planejar a morte, escolher o que queremos que nos seja subtraído, e do que queremos ser subtraídos, amputados, isto é, escolhendo nossos amigos, quem queremos que sinta nossa falta, não pelo puro prazer frugal de se sentir sentido, (aqueles prazeres patéticos, quem vai chorar no meu funeral, o Nelson Cavaquinho e o Guilherme de Brito falam sabiamente, eu troco seu choro por mim, sua homenagem a mim depois de morto por alguma coisa que você faça hoje por mim), mas pra ter a certeza de ter visto e sentido em muitos a vida em pessoa. E eles em nós, reciprocamente. ("Nada é recíproco", onde ouvi isso?). Não a certeza absoluta, claro - certezas sem certidões. Mas eles, por serem a vida, todo o amor se converte em seu contrário, perde-se eles, perde-se a vida. O amor converte-se não pela bobagem de que não vai durar, que por não durar deve ser chorado, Freud já disse o contrário, que por ser pouco duradouro é tão bonito, uma paisagem, uma pessoa, [A transitoriedade], já disse o Itamar Assumpção, isso não vai ficar assim, meu bem, por isso beije-me. Puta que pariu agora, pelo amor de deus. Contrário de amor aqui não ódio, mas desespero, numa potência contrária, mais que o literal suposto contrário, ódio so called, sem falar da proximidade entre ódio e amor, não se trata de amor/ódio, quem briga ama, quem ama briga, esses lugares comuns, porém acertados, mas outra coisa, escolher quem se ama é escolher quem nós queremos que tenha poder para nos matar, é dar a vida nas mãos de um outro, diluir-se em outro, faz o que quiser com isso, eu não sei direito o que fazer, você parece ter se interessado, eu nunca usei muito, não, pode ficar, é, eu só tenho essa aí, mas fala sério, tá pegando poeira lá em casa, é bom que pelo menos alguém vai usar, se ficar comigo, vai ficar parada, eu vou olhar pra ela, ela pra mim, e vai ficar nessa, fica contigo, é até bom, de repente eu fico com ciúmes e resolvo pegar de volta, quê?, é, eu tô só te emprestando, ah, você quer pra você pra sempre? Tipo dado?, ah tá, sei, bom, isso já é outra coisa, se bem que ok, tá, leva, é, leva, não tô fazendo drama não, pode levar, isso já tá há tempo demais comigo.


**
sut:
Pegamos um táxi na Urca. Encostei minha cabeça no ombro dela. Afundei no banco, depois em mim, nas dores do intestino. Ela ali comigo. Eu olhando a rua, a chuva, as pessoas atravessando a rua, as gotas distorcendo a visão pelo para brisa, eu pequeno, pequeno não sabendo as trajetórias daqueles carros, daqueles pedestres, atravessando entre os carros, dentro e fora da faixa, os olhos iluminados como bichos na estrada, o susto imóvel e confuso dos bichos, violentos, fazendo tão pouco sentido, não sabendo por onde íamos, sabendo apenas de onde saí e para onde ia, não sabendo por onde, como era quando eu era criança, eu não entendia os caminhos, me abandonei naquele momento de tal modo, de tal modo criança, que morrer poderia ser fácil, ser um passo seguinte, tão óbvio quanto ter entrado naquele carro, sem nenhum peso, sem nenhuma morbidez, mas aquele amor preocupado e firme do osso do músculo do sangue da Luísa, aquele amor era a garantia de que se eu morresse ali, estaria seguro.

luísa:
Ele me dobrou de novo,
foi o que eu pensei
quando você encostou a cabeça no meu ombro dentro do táxi.
E não foi a primeira vez. Abraçar o amor e a vida, você disse, e conseguiu,
de novo. E aí pang, domingos terríveis, você nunca vai entender,
vai?

O filme era ótimo.
Pang
de novo.
(Beauvoir me deu vocabulário
para o que eu não tinha
palavras.)

E Tim Maia cantando o que eu gostaria de dizer pra você, às vezes no silêncio da noite e todo o resto, cada palavra.

A compulsão da escrita.
Nada mais a dizer e continuar
escrevendo, lá no fundo
aquela sensação de que algo foi modificado para sempre.
Agora descobrir se para o bem ou para o mal.


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"'All is lost. All is lost.' It's all I've ever written" Cronenberg e/ou Burroughs. Naked Lunch.

Stravinsky fagoteoboeicamente arrulha dissonante que nem tudo está perdido. Nem tudo: apenas. Stravinsky me lembra de todos os finais que vislumbrei ou sobre os quais tropecei. Todos os cortes que me vararam o ventre, como se meu ventre fosse infinito e o corte nunca concluísse. Como disse o Mutarelli, seu som soa no ritmo em que vivo, sinto e penso. Stravinsky vem me dizer que nada está por ser achado. Não que a vida esteja feita, concluída. Mas que nada está por ser achado. Não que eu seja hoje tudo quanto possa, o máximo, do que algum dia poderia ser. Mas que nada está por ser achado. Não que eu ainda não vá viver longos anos, (Paciente da Kehl: "Sei que daqui a um ano vou me sentir melhor. Um ano passa rápido. O que demora a passar é um minuto"), felizes e miseráveis. Mas que nada está por ser achado. Não que hoje eu não ame e odeie e desespere e não vá mais amar e odiar e desesperar. Mas que nada está por ser achado. Não que eu não possa rir do que é engraçado e chorar do que é terrível. Mas que nada está por ser achado. Não que qualquer coisa não. Mas que nada está por ser achado. Não que tudo esteja perdido. Mas que tudo está perdido. Quer dizer, que nada está por ser achado. Nada. Não que mas.

Nada está por ser achado. Não que eu não vá procurar oquequerque, não que eu não vá achar oquequerque, não que oquequerque não vá me mudar, não que eu não vá mudar o quequerque, não que eu morrendo, transformando-me, não deixarei sempre de ser o que era pra ser outra coisa. Mas que nada está por ser achado. Não que eu não vá descobrir outras coisas, outros rostos, outras maneiras de sofrer, de gozar, não que mas, de pensar, de foder, de beber, de comer, não que eu não vá descobrir bares recônditos e charmosos em ladeiras do Catete, experiência de suma tranquilidade e paz que quase me faz chorar pela nostalgia futura que me abate, a luz amarela sol indoor noturno wáttico halando pelo teto e paredes e os demais presentes, as suas conversas que, graças aos deuses, não ouço, senão belos ruídos, alguns homens bonitos, algumas mulheres bonitas, outros não, outras não, uma cerveja impossível no copo em minhas mãos, e uma mulher, minha companhia, ela disse alguma coisa, me fez rir, o riso dependurou-se um momento mais do que eu planejava pra ele, o tempo de me fazer pensar, o tempo de se tornar outra coisa, perdi o controle, e talvez seja ótimo, ou talvez apenas seu rosto se apague, toda a luz do bar em seu rosto desvaneça, esse rosto liso e negro, sem olhos, boca, nada, é esse vazio (o resto não, o corpo não, um belo vestido e decote, pele branca, etc.) que logo depois se alumia, foram uns dois três segundos escuros, e vejo sua expressão, a pele do rosto esticando e contraindo, os dentes, a cor dos olhos em trânsito, ela ri e pergunta o que estou pensando.

Foi assim?

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